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+ sobre Desvio no FIT 2007

Texto de Marcos Bulhões, publicado no Jornal FIT 2007 em 19/07/07, sobre a apresentação de Desvio no dia 18/07/07 pelo Festival Internacional de São José do Rio Preto.

Marcos Bulhões – “Desvio” | 19/07/2007

O Desvio do Olhar – Uma instigante intervenção no espaço urbano

Você gostaria de ser testemunha de um crime? Com essa convocação chegamos ao bar situado em frente à praça central da cidade. Estes são os dois pontos de partida – o dra-matúrgico e o espacial – que o Erro Grupo de Florianópolis escolheu para promover uma reflexão sobre o nosso ato de observar. Depois da primeira cena, iniciamos um périplo pelas ruas e praças da cidade, atrás de atores que nos mostram cenas fragmentadas, que surgem e desaparecem. Vislumbra-se a experimentação da arte como intervenção no co-tidiano das pessoas, criando situações, experiências que habitam territórios desconheci-dos para o publico e para os próprios artistas, privilegiando a rua como espaço para ações estéticas. O coletivo de criadores quer interferir nos fluxos cotidianos, na paisagem urba-na, procurando outros modos de viver a cidade e de inserir-se nela.

Em Desvio, a recusa do oferecimento do bom espetáculo nos impõe uma radicalização do papel do público como co-autor do sentido da cena. Em todo tipo de teatro, o espectador, de algum modo, é responsável pela criação dos significados. Mas, na vivência que o gru-po nos propõe, essa co-autoria da imaginação individual se torna infinitivamente maior. Participamos desse jogo mesmo que não sejamos obrigados a fazer parte dele. Essa con-dição de liberdade, inclusive, é lembrada durante o percurso, quando a atriz, no meio do caminho, nos pergunta se ainda queremos continuar o périplo.

Uma situação como essa também é uma situação política. Não é um efeito político a par-tir da informação veiculada, não é uma política que se instaura na forma despedaçada da narrativa, mas no processo vivido por cada um, na maneira pela qual o teatro altera a nos-sa percepção dos temas políticos, questionando a forma com a qual os percebemos. Isso tem a ver com a relação que cada espectador estabelece com o que está acontecendo. Não se trata da transmissão de uma idéia, de uma ideologia, de um conceito. O efeito político deste tipo de cena surge da experiência artística do espectador.

Dramaturgia esfacelada, obra aberta, lacunar, na qual eu posso preencher com sentido o que não é revelado, os espaços em branco. Somos nós que editamos o que queremos ver. Podemos ver a cena de cima, de lado. Posso estar entre os atores, subir no banco. A cabe-ça oscila entre um ponto e outro do espaço. Alem de editor das imagens, neste périplo a platéia também pode assumir o papel de coro. Entre um ponto e outro do trajeto somos nós que comentamos enquanto eles correm afastando a cena para um ponto mais adiante.

Durante a caminhada a apresentadora anuncia no microfone que o espetáculo da violência está para acontecer em breve. Mas a violência surge a todo o momento, no meio das ce-nas, de forma abrupta, em rompantes, sem justificativa dramática, espelhando a irraciona-lidade com que ela se manifesta atualmente nos grandes centros urbanos. A atuação física agressiva rompe reiteradamente com o jogo das cenas que problematizam nossa noção do que é espetacular, provocando a visão do mundo com olhos estranhados.

Diferentes tipos de atuação são utilizados numa mesma cena, mesclando interpretações realistas com gestos coreografados. A narração no microfone que lembra o circo de variedades e a paródia de números de musicais americanos intercalam as breves ações que se instalam em diferentes pontos do trajeto: no centro de uma roda no calçadão, no alto de um prédio, em frente do portão fechado de uma loja, no meio do público, descendo as es-cadas na contramão do trajeto da platéia, em bancos de praça.

Durante a caminhada, lembramos de Dog Troup, grupo holandês conhecido pelas inter-venções em espaços públicos. Mas, desta vez, o espaço não está protegido da realidade. As ações das pessoas que passam podem ser incorporadas na nossa leitura. Na cena do ensaio do assassinato, sendo repetida várias vezes, o teatro se desfaz em nossa frente, se desmonta. O interessante procedimento metateatral é cortado pela passagem de um ho-mem correndo, sem nenhuma explicação. Algumas pessoas se perguntaram: “Pode ser verdade?” A sensação de verossimilhança assusta, pois revela o nível de violência a que chegamos.

Anuncia-se constantemente o assassinato de uma personagem, mostrada a todos como a vítima, gerando um efeito de suspense em clima irônico, criando em nós a sensação de participar de um ritual sádico. Mas o publico não vê o assassinato da vítima anunciada, pois quem morre é outra pessoa, justamente a mulher, cuja presença é marcada pela repe-tição de perturbadoras gargalhadas. Ao invés da versão em forma de show, o assassino age sem nenhum glamour.

Em função da ansiedade em tudo desmanchar, nessa noite os atores não esperaram que todos se aproximassem para poder mostrar esta ação fundamental. Desta forma, a maioria da platéia ficou impedida de usufruir de uma imagem poderosa, pois incita ao olhar re-trospectivo, que provocaria a revisão de todo o sentido da narrativa. Esse exagero na im-permanência das ações atrapalhou consideravelmente a reflexão pretendida. No meio da caminhada, há quem tenha desistido de qualquer significação, perdido não pelo jogo eficiente com a estética cênica do fragmento, mas pela dificuldade de escutar e ver os ato-res. Sentimos falta de um maior equilíbrio entre a dispersão do deslocamento e os momentos em que a visibilidade e a compreensão da fala são importantes.

Se pensarmos na perspectiva de um espetáculo convencional, muitas falhas poderiam ser apontadas – dramaturgia frouxa, problemas de visibilidade, dispersão do publico, execução aleatória das ações físicas pelos atores, problemas de unidade de um discurso cênico, dentre tantos outros. Visto como um acontecimento, nossas exigências podem ser outras.

O principal desvio é o do ponto de vista. Por um lado, o trabalho questiona a forma de o-lhar a vida cotidiana, a espetacularização da violência. De outro, propõe um outro olhar para a própria ficção teatral. Esta forma explodida, em devaneio, mutante, ocupando diferentes espaços e planos, provoca em nós um choque perceptivo. É a condição de experi-mento de alteração do papel tradicional do espectador teatral a grande contribuição promovida pela montagem.

Leitor crítico: Marcos Bulhões Espetáculo: “Desvio”, Erro Grupo, Florianópolis/SC.
http://www.festivalriopreto.com.br/2007/asp/index_html.asp#