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Eu sou um erro – Jan Fabre
Texto publicado em Jan Fabre, “Je suis une erreur”, in L’Histoire des larmes et autres pièces, versão francesa de Olivier Taymans, Paris, L’Arche, 2005, p. 195-207. Tradução de Sílvia Fernandes – Revista Sala Preta.
Eu sou um erro
Jan Fabre
Monólogo para um fumante inveterado
(o texto é falado tossindo)
Eu sou um erro
Porque eu não pertenço a nenhuma raça
Eu sou um erro
Porque eu sou um movimento solitário
Eu sou um erro
Porque eu ainda sou curioso
Eu sou um erro
Porque eu sou meu próprio inimigo
Eu sou um erro
Porque eu não sou doente
Eu sou um erro
Porque eu não tenho medo da morte
Eu sou um erro
Porque eu não tenho nenhuma ligação com a
Sociedade contemporânea
(ele acende um cigarro)
Eu sou um erro
Porque eu sou uma colméia
Eu sou um erro
Porque eu detesto a moda
Eu sou um erro
Porque eu sou alienado
Eu sou um erro
Porque eu repito tudo
Eu sou um erro
Porque eu não acredito nas informações
Eu sou um erro
Porque eu sou mau ator
Eu sou um erro
Porque eu quero fazer o que não sou capaz
Eu sou um erro
(acende um cigarro)
Eu sou um erro
Porque eu falho em tudo
Eu sou um erro
Porque eu sou orgulhoso
Eu sou um erro
Porque eu sou um grandiloqüente grotesco
Eu sou um erro
Porque eu tenho uma angústia nobre
Eu sou um erro
Porque eu tenho útero
Eu sou um erro
Porque a vida íntima dos outros me entedia
Eu sou um erro
Porque eu sou um anão idiota
(acende um cigarro)
Eu sou um erro
Porque eu não gosto de falar de mim
Eu sou um erro
Porque eu gosto da pobreza
Eu sou um erro
Porque eu não acredito na erudição
Eu sou um erro
Porque eu sou um animal perigoso
Eu sou um erro
Porque eu sou uma possibilidade
Eu sou um erro
Porque eu sou um desterrado
Eu sou um erro
Porque eu não tenho vergonha
(acende um cigarro)
Eu sou um erro
Porque eu desconfio do sol
Eu sou um erro
Porque eu destruo meu trabalho
Eu sou um erro
Porque eu sou muito nervoso
Eu sou um erro
Porque eu sou insensível
Eu sou um erro
Porque eu sou vadio
Eu sou um erro
Porque eu não conheço a ternura
Eu sou um erro
Porque eu não sou um homem
Eu sou um erro
Porque eu sou um deus
Eu sou um erro
Porque a insônia me faz viver
numa tempestade de sonhos
Vagas de pesadelos
me afogam
E eu adoro isso.
Eu já imaginei, vivi e criei
tudo, eu disse tudo
E eu nunca
consegui
analisá-los
Eu tenho um sonho recorrente
Que me acompanha sempre
como um amigo fiel
Eu me vejo
num mar de seres humanos
eles têm um corpo
E eu…
Eu sou um corpo
Eu sou um corpo repleto de calor
Que aquece como brasa
Que fuma e que conspira
(ele acende um cigarro)
O cigarro é um prazer
para os sentidos
para o olho
para o olfato
e para o toque
Eu sou um erro
Porque eu sempre sacrifiquei
meu amor
passional
sublime
por um outro
amor passional sublime
Estou mentindo?
Isso não passava de um desejo?
Eu não podia mais distinguir
a verdade do fingimento
Foi isso que sempre me manteve vivo
Até agora
Eu sobrevivi
(ele acende um cigarro)
É um prazer contemplar o cigarro
Entre meus dedos
Sentir o filtro
entre meus lábios
Sentir a nicotina
em meus pulmões
Ver o movimento
das volutas de fumaça
Eu sou um erro
Porque eu desejo demais
É um desejo mais forte que a fome
E mais difícil de satisfazer
A anarquia do desejo
é inconciliável
com a vida
É mais radical que a vida
E por isso mais esmagadora
Só a morte
pode salvá-la
acolhê-la
Quem acende um cigarro quer
celebrar sua alegria
ou esconder sua dor
Eu sou um erro
Porque eu moldo
Minha vida e minha obra
Ao meu gosto
DE MANEIRA ORGÂNICA
Sem me preocupar
com o que se deve fazer
ou com o que se deve dizer
Por isso eu não devo esperar
solidariedade…
Não devo contar com ela.
Por isso eu fumo só
(ele acende um cigarro)
O cigarro, parceiro
de todos os eventos
da vida
Eu sou um erro
Porque eu sou imortal
Às vezes é uma pena.
Morrer a tempo
pode ser bom
Para um artista.
Em muitos casos é
Uma correção histórica.
Vem no momento oportuno.
(ele atua com um cigarro aceso)
Eu gosto do movimento
Das cores
que se confundem
A chama pequena
que vacila
o reflexo
e a cintilação
a morte
do pequeno pavio de madeira
a cintilação
o carvão da madeira
a obscuridade
e o recomeço.
Eu sou um erro
Porque eu sou imortal
Às vezes é uma pena.
Seria preciso que eu sucumbisse
e o mundo exterior também.
(ele acende um cigarro)
Mais um cigarrinho
Um amigo fiel
nos dias difíceis
e nos dias melhores.
Eu me lembro…
de um artigo no New York Times
uma ode
Elogiosa à minha obra
Eu me lembro
da última frase
“Esse brilhante artista belga é um gênio”
Muito lisonjeiro para ser verdade
Mas devo ser honesto
Isso me deu prazer
Eu comecei a rir bem alto
porque eu dizia a mim mesmo…
que um artigo assim
não deixaria de causar
muita inveja e ciúme em meu país.
Eu deveria ter morrido naquela hora
naquele lugar
Mas infelizmente isso não aconteceu
Porque eu sou imortal
Eu sou um erro
Porque tudo que eu digo
eu penso
eu não conheço o cinismo
A ironia é para os fracos
Eu sou alguém
que se dá conta…
de que é um aristocrata contemporâneo
arrogante
e desastrado
Eu sou um erro
Porque eu sou insensato
Eu fumo
Eu fumo muito
fumo demais
dia e noite
Eu tenho um câncer
um câncer na garganta
os médicos dizem…
que eu vou morrer
E mesmo assim eu fumo
Muito
Demais
A razão, é preciso deixá-la
aos imbecis
Eu não conseguiria mais me olhar
no espelho
se eu me deixasse intimidar
pelos médicos
Eu não saberia
como continuar
a viver
Nem como morrer
(ele acende um cigarro)
Eu sou fiel
ao prazer
que tenta me matar.
Texto publicado em Jan Fabre, “Je suis une erreur” (texto completo), in L’Histoire des larmes et autres pièces, versão francesa de Olivier Taymans, Paris, L’Arche, 2005, p. 195-207. Tradução de Sílvia Fernandes publicada na Revista Sala Preta (n.7 – 2007).