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Invenção e invasão

“ERRO Grupo – um teatro de invenção e invasão”, texto escrito por Marco Vasques e Rubens da Cunha (da Revista Osíris) que foi publicado no Jornal Ô Catarina número 74 – 2011, sobre o ERRO, seus conceitos e o trabalho Formas de Brincar.

O ERRO Grupo iniciou o ano de 2012 trabalhando intensamente na pesquisa, dramaturgia e preparação para a sua nova obra que estreiará em julho desse ano. Enquanto o grupo prepara mais informações sobre a obra, publicamos aqui o texto

ERRO GRUPO – UM TEATRO DE INVENÇÃO E INVASÃO

escrito por Marco Vasques e Rubens da Cunha (da Revista Osíris) que foi publicado no Jornal Ô Catarina número 74 – 2011, sobre o grupo, seus conceitos e o trabalho Formas de Brincar.

UM TEATRO DE INVASÃO

Intervenções do Erro Grupo leem o espectador pelo toque e levam o estranhamento às ruas

POR MARCO VASQUES E RUBENS DA CUNHA

O teatro feito para ser apresentado na rua quase sempre tem o caráter de divertir, de alegrar, de envolver o passante através do clown, da burla, da fábula. É bom lembrar que já no século VI a.C. o mítico ator Téspis fazia apresentações em um carro, no meio do mercado de Atenas, o que equivale dizer que o teatro nasceu na rua. Apesar de sua origem, a ideia principal de teatro ligou-se a um lugar específico, uma grande construção em que as pessoas vão para “assistir” ao teatro. Com o passar dos séculos, a rua, o “desconforto” da rua, já não parecia ser mais digno do teatro.

No livro “Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco”, organizado por Evelyn Furquim Werneck Lima, o diretor André Carreira colabora com o ensaio “Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade”, em que afirma que “tradicionalmente o teatro de rua aparece como um modo espetacular relacionado a uma vontade de abandono do recinto teatral, que responderia ao desejo de levar o teatro a um público sem acesso ao teatro. Isso implicaria também o desejo de produzir um impacto sociopolítico direto, de tal forma que se entrelaçariam a interpretação cultural e as manifestações culturais”. Dessa forma, a origem do teatro se torna uma espécie de ferramenta de ruptura, de confronto com o status quo. O teatro de rua, para além da condição de submodalidade da cultura popular, é algo complexo que, segundo Carreira, é uma espécie de fala da resistência que ocupa o espaço urbano, uma busca de ressignificações dos sentidos da rua e, com isso, consegue interferir no sentido das cidades, na lógica da contínua espetacularização da vida. Além disso, se se levar em consideração que os ritos tribais/míticos anteriores a Téspis estão imbuídos da atitude cênica, conforme Julia Kristeva, confirma-se o caráter público e mundano da arte teatral. É bom alertar, ainda, que divertir e alegrar são qualidades — de acordo com Brecht — e não defeitos, sobretudo quando apresentam outras camadas de leituras.

O Erro Grupo, de Florianópolis, tem como base das suas pesquisas dos últimos dez anos justamente o teatro de rua e a intervenção no ambiente urbano. Muitos dos trabalhos tratam da morte do espírito lúdico, da ausência de espontaneidade, da mecanização das ações, da petrificação da carne, da coisificação do homem, da sexualidade, das disputas infundadas, da banalização do jogo e da institucionalização dos sentidos.

Não precisamos chegar a filósofos como Johann Huizinga, Jean Baudrillard e Michel Foucault, que norteiam o trabalho do grupo, porque podemos passar antes pelos mitos gregos, romanos e cristãos, Sade e Rimbaud. Sob essa ótica, os espetáculos do Erro levam os transeuntes à estupefação, ao prazer e ao estranhamento, porque leem os espectadores pelo toque, pela provocação, pela brincadeira, pela ranhura na pele e pelo convite à análise (física e psíquica) das ações que desencadeia no ambiente, na paisagem e nos homens.

FAZER PARTE DO ESPANTO

É do espanto platônico que vive o teatro de ocupação do Erro Grupo. O espanto de quem se identifica, de quem percebe que a encenação não fala de ninguém distante, mas do próprio sujeito espectador. As histórias trazidas para as ruas são as próprias histórias dos passantes que tomam parte na encenação porque pertencem à cidade, à comunidade. Dessa forma, o espanto faz com que o espectador perceba que é parte de uma história, ou parte da História. O espanto que o Erro provoca no espectador traz a marca do tempo. É na órbita do desvio, nome de um dos espetáculos do grupo, do estranhamento, da surpresa, da ocupação/ posse do ambiente, do deslocamento, da fratura e da ação crítica, política e poética que as apresentações do Erro Grupo se situam. Elas transitam entre os conceitos de presença do ator, conforme o pensamento de Richard Schechner e o teatro in/visível de Augusto Boal.

É na formulação do discurso que a teia dessas ações reverbera. Entrar no jogo dos seus espetáculos é vagar na linha tênue entre o real e o ficcional. E é aqui oportuno indicar o filme “Noviembre” (Espanha, 2002), de Achero Mañas, que apresenta a história de um grupo de teatro de rua e desvela os seus procedimentos. Há muita relação entre o filme e o teatro de ocupação exercido pelo Erro Grupo. “A arte é uma arma carregada de futuro”, diz um dos personagens. E é assim que o grupo usa sua estética: como arma para o futuro. A prática do Erro propõe o deslocamento do público, uma “navegação” que é muito favorecida pela possibilidade de escolha do lugar onde o espectador pode ficar. O espaço cênico é constantemente modificado pelo público, no vai e vem dos que estão assistindo e daqueles que estão somente de passagem. Toda essa encenação em torno da encenação afeta a percepção, o espanto, e é sempre muito bem utilizada nas apresentações do Erro Grupo. Trata-se de um teatro descontaminado de teatro, contudo teatralidade pura. É um teatro de ironia refinada que ilumina sobre a luz, como diz Diógenes.

RISCAR NO OUTRO A PARTE MAIS FEIA

Três mulheres, numa praça pública, com roupas que representam culturas distintas, se apresentam: elas fazem uma espécie de exibição das suas crenças. Não se toleram. Ao término da exibição, tiram suas roupas e entram numa luta corporal. Mas não é uma luta corporal qualquer, porque se agridem a partir dos símbolos de suas raízes, se mutilam com/pelo símbolo. Após a cena de violência e de intolerância, as três mulheres se dirigem ao público com lápis nas mãos e travam uma luta pela correção do corpo. Sim! O pedido é para que o público vá a alguma das atrizes-mulheres e risque a “parte mais feia da outra”. No espetáculo “Formas de brincar” ocorre uma espécie de julgamento e de sacrifícioem público. Enquantoisso, os atores Michel Marques e Juarez Nunes brincam o jogo popular das Cinco Marias. Contudo, o jogo, que tem na sua origem o aspecto puramente lúdico, passa por uma disputa monetária que interfere intertextualmente nas ações das atrizes. O público é tomado pelos múltiplos jogos ofertados. As atrizes usam seus corpos e tomam de empréstimo vários corpos de espectadores que passam a fazer parte da cena, passam a atuar e saem da condição tradicional de passividade. E, em alguns momentos, o público se torna o centro da ação cênica.

“Formas de brincar” é tomado de uma ironia acerba e de um niilismo nietzschiano capazes de tatuar, para sempre, um desconforto na vida-rotina de quem vive e entra em suas perversidades brincantes. Numa sociedade em que tudo é mensurado pela matéria, pela posse, pelo poder, por títulos e categorizações, o espetáculo apresenta, ao final, uma votação pública com intuito de premiar a performance das atrizes. A vencedora receberá um troféu: a caveira de um gado. É na linguagem e na fala/mito (Roland Barthes) que reside a força conceitual do trabalho do Erro Grupo. Temos que entrar na vida de “Formas de brincar” como se entra na leitura de “O jogo da amarelinha” (1963), romance de Julio Cortázar, isto é, olhar a multiplicação/fragmentação de todos os todos. Desde os espetáculos “À margem” (2001) e “Carga viva” (2002), estamos diante de um grupo de experimentos radicais que coloca em questão não só a pasteurização social, mas a própria prática do teatro. Há nessa estética a minimização de elementos tradicionais do teatro — dramaturgia, cenário, iluminação — e uma apropriação dos espaços urbanos: praças, prédios, ruas, casas. A cidade é envolvida organicamente na cena, a ponto de toda ela se tornar cenário e ação teatralem si. Assimfoi com “Enfim, um líder” (2007), “Desvio” (2008) e “Escaparate” (2009), espetáculos que, assim como “Formas de brincar” (2010), propõem uma vida teatral fora do discurso das ações tradicionais, embrutecidas e coisificadas. Temos um teatro de coragem, de enfrentamento e de desnudamento dos aspectos mais escrotos da falsa sanidade que nos cerca. “Formas de brincar” é brutal, terno e capaz de incomodar até o mais obtuso dos homens que, seguramente, será apanhado pela garganta.

TEXTO PUBLICADO NO JORNAL Ô CATARINA!, DA FCC, PRIMEIRA EDIÇÃO 2012